"A PRISIONEIRA" - CAPÍTULO 02.
Como ela conseguiu, durante tanto tempo, omitir um crime tão precipitado como aquele? O caso, talvez por negligência das autoridades locais, foi arquivado. Simplesmente por descobrirem a quem pertencia as impressões digitais daquele revólver que tirou a vida de Marcelo e de seus dois comparsas. Sônia, entretanto, nunca superou o incidente, embora tido uma vida aprazível e completa com o seu cônjuge, Rossi. Martinha, a sua sogra, subsequente à ida para os Estados Unidos, conheceu um russo por lá, chamado Vladmir. Ambos casaram-se, meses depois, e foram morar em São Petersburgo. Viagens, consolidação na vida financeira, cultura, estudos e relações diplomáticas. Sônia, nesses 17 anos, acompanhou Rossi, empreendedor criativo e visionário, em tudo o que envolvia o cotidiano de alguém minimamente sofisticado. Contudo, após Martinha retornar, viúva novamente, a Los Angeles, e Sônia receber notícias de seus familiares em Curitiba, esta finalmente constatou que estava chegando a hora de retornar ao cenário que marcou profundamente a sua trajetória paradoxal de uma criminosa arrependida.
2015. Curitiba, capital do Paraná. Lídia, prima única de Sônia, consolidou-se como uma exímia jornalista investigativa. Sua mãe, Carenina, uma mera mulher fútil e ascendentemente rica. Nunca precisou trabalhar devido ao empenho da filha dedicada. Ainda mais pelo fato de, nesse momento, estar noiva de um sujeito misterioso, reticente, porém irresistível, conforme os próprios argumentos dela. Esse sujeito, Zepelin. Homem de meia-idade, alto, caucasiano, charmoso, retrô para os padrões da época, com um visual dark e expressão invariavelmente sisuda. Curioso, ele estava forçadamente ansioso com a chegada daqueles parentes mencionados tanto por sua noiva quanto por sua futura enteada. Sobretudo por se instigar com a história dramática, quase trágica, marcante na vida daquela família. Um sequestro com evidente intenção de morte, e tanto filho como mãe salvos por um assassino que, precisamente e, providencialmente, espiava-os através de um morro em cuja vista se privilegiava o panorama da mansão? Essa pergunta atormentava o espírito desconfiado e lógico de Zepelin. Mas, após a chegada de Sônia, Rossi e Martinha, achou preferível nem sequer mencionar mentalmente aquele episódio triste.
Horas se passaram. Carenina e Lídia conduziram os três convidados para a saída, num corredor de pedra circundado por inúmeros arbustos que dava ao portão automático. Antes da despedida, Aquelas comentaram sobre as novidades, mudanças na cidade de Curitiba, além da chave da mansão de propriedade de Martinha. Durante todos esses anos, Carenina se habilitou a cuidar do recinto, até o retorno dos donos. Assim, Carenina entregou a chave para a dona, e todos se despediram, contentes com o reencontro. Contudo, sem imaginarem, Zepelin ficou escondido atrás do arbusto mais próximo de onde eles estavam. O motivo? Nem o próprio sabia ao certo. A questão é que ele objetivava ouvir frases ambíguas, conversações intrigantes, ou seja, tudo o que remetesse ao crime que vitimou Marcelo. Frustrado, ele apenas presenciou assuntos corriqueiros e fúteis. A sua curiosidade, no entanto, era no mínimo suspeita. Ainda mais por ter reagido sem naturalidade quando, antes da festa, Carenina comentou que Rossi e Martinha quase foram mortos por Marcelo e seus comparsas. E Sônia? - pensava ele. Em qual lugar estava no instante fatal do assassinato dos bandidos?
Alguns instantes depois, Sônia, Rossi e Martinha retornaram à mansão. Esta elogiou a nova decoração providenciada por Carenina, uma vez que conseguiu atenuar e disfarçar o palco sangrento daquela tragédia. Subsequente a essa afirmação, ela subiu para os aposentos do segundo andar. Rossi, por sua vez, notou o ar reflexivo, bem como o olhar contemplativo de sua mulher. Convidou-a a dar uma volta com ele pelo jardim. Embora receosa, Sônia aceitou sem objeções.
À medida que caminhavam pelo local, num ambiente iluminado por luzes situadas no canto dos muros trepadeiras, eles dialogavam sobre os seus empecilhos atuais. Por um lado, Rossi mencionou sobre os preparativos da fundação de sua casa de shows, ainda querendo encontrar um ponto minimamente bem localizado e seguro. Por outro, Sônia refletia em relação ao seu desejo de adotar uma criança. Quando se casou com Rossi, nos Estados Unidos, descobriu-se estéril. Logo, notando a consternação de sua mulher, Rossi disse que haveria mais chances de adotar uma criança mais velha. Pois bebê era raro, tal como extremamente burocrático. De chofre, Sônia novamente ficou com aquele ar distante e misterioso. Começou a observar fulminantemente o morro situado nos fundos da mansão. Lugar através do qual se avistava a vista panorâmica da janelona da sala. O mesmo ponto sobre o qual ela consumou o ato que lhe atormenta até hoje. Rossi, percebendo o incômodo de Sônia, adquiriu uma dúvida incipiente. Essa dúvida bruscamente se transformou numa desconfiança. Assim, ele preferiu deixar de lado suas deduções e receios. Na certa, não queria admitir o que estava pensando sobre aquele momento, e, sobretudo, o comportamento estranho e dúbio de Sônia. Por fim, ele a pegou pelos ombros, mirou o seu olhar benevolente e amável, e prometeu que, por mais burocrático e difícil que fosse, ambos conseguiriam adotar uma criança, e consolidar esse casamento bonito que os dois construíram paulatinamente. Menos sisuda e atormentada, Sônia esboçou um sorriso discreto, mas não menos alegre. Abraçou-o fortemente e se declarou uma mulher apaixonada e feliz dentro da realidade.
No dia seguinte, Sônia procurou Lídia na casa dela. Estava evidentemente nervosa. Só encontrando Carenina, perguntou o paradeiro de sua prima? Simultâneo a essa pergunta, Zepelin se encontrava discreto, surgindo do corredor da cozinha. Quando notou a visita - justamente aquela mulher que lhe intrigava -, decidiu se manter discreto, observando a situação. Carenina, ao responder a pergunta, esclareceu que Lídia, nesse instante, estava trabalhando numa editora de jornal situada no centro da cidade. Assim, Sônia controlou-se num átimo. Nem ela compreendia esses rompantes. Ou talvez tentasse diminuí-los omitindo a sua verdadeira angústia. Não obstante querendo ir embora, Carenina a pediu para ficar. Pois queria conversar sobre os dramas de sua filha. Sônia não entendeu inicialmente. Carenina minuciou, desse modo, a questão de Lídia ainda ser apaixonada por Cássio - o comparsa de Marcelo morto no assalto à mansão de Martinha. De chofre, Sônia reagiu teatralmente à afirmação. Segurando um copo de água no momento, ela o derrubou, sentou quase debilitada no sofá e respirou com dificuldade. Carenina ficou estarrecida. Zepelin, notando o clima exasperador, saiu da sentinela, aproximou-se delas e acudiu Sônia, colocando água na sua fronte. Após alguns instantes, Sônia se recompôs. Mas mal agradeceu a ajuda, e logo se desvencilhou deles, indo embora. Desse modo, Zepelin agora sabia: sua futura enteada, Lídia, foi namorada do comparsa de Marcelo. E estes últimos foram mortos no mesmo dia. Vendo a reação antinatural de Sônia, começou a encadear ideias, contudo ainda teóricas. Necessitava de provas concretas.
Instantes após, Sônia começou a andar pelas ruas do bairro Rebouças. Apesar de interiormente abalada, contemplava, a cada passo, o sol alumiando a sua face, as ruas, os ônibus e os pedestres. Aquela cidade, para ela, estava diferente. Curitiba, até os anos 90, considerada a Europa no Brasil, hoje era mais diversificada. Quando chegou ao quartel geral, recordou-se que Marcelo trabalhou por lá. Era policial militar. Depois, continuou andando pela Marechal Floriano, dobrou na Avenida Sete de Setembro, e se direcionou até a Rodoviária. De lá, ela começou a pensar em Cássio. Mais precisamente na infância feliz que ele teve. Pois ela, Lídia e Marcelo eram vizinhos do mesmo, no subúrbio da Vila Torres. Tanta reflexão quase lhe tirou a vida de maneira leviana. Pois, no momento, um ônibus turístico quase lhe atropelou quando saía de uma ruazinha da Rodoviária. Sônia reagiu, impulsiva, pulando mecanicamente para a calçada de trás. Mas não deixou de recordar. Lembrou-se, agora, de um fato mais preciso, e marcante. Tanto na vida dela como na de Cássio, Marcelo e Lídia.
Quando Cássio tinha 16 anos, Sônia tinha 17. Ela lembrou dessa época com exatidão. Uma vez que aquele foi atingido por um ônibus que vinha da canaleta. Não morreu por pouco. O acidente, por sinal, foi presenciado por Sônia, Lidia e Marcelo. Desespero, gritos de Lídia e nervosismo de Marcelo. Somente Sônia manteve-se racional. Foi, por isso, a única que acompanhou Cássio na ambulância chamada por ela mesma. De lá, ela pedia força e coragem, pois ainda seria madrinha do casamento dele com sua prima. Cássio, embora debilitado, agradeceu o apoio, mas, rapidamente, desacordou. Depois de alguns dias, recuperou-se.
No presente, Sônia se indagava: por quê Cássio se perdeu na vida? Garoto dócil, amoroso, era completamente divergente de Marcelo, esse sim, um sujeito que sempre demonstrou uma índole deturpada e um caráter duvidoso. Contudo, logo ela parou de se martirizar com perguntas impossíveis de serem respondidas. Ainda mais porque ela objetivava, definitivamente, esquecer o crime que cometeu. Paradoxalmente, ela queria adotar uma criança. Isso evidenciaria a sua necessidade de se desapegar de lembranças tão marcantes e tristes. Mas, irônico destino! Ou melhor, controversos pensamentos! De chofre, Sônia pensou na mãe de Cássio, Fabíola, e no irmão dele, Marco Aurélio. Decidiu procurá-los na Vila Torres, local onde, intuitivamente, ela deduziu que ambos ainda moravam.
Mesmo receosa em ser tratada com desrespeito por Fabíola, Sônia não hesitou. Chegou ao bairro. De lá, surpreendeu-se por ser bem recebida por Fabíola. Marco, por sua vez, diretamente comentou sobre o assunto que os interligava: a morte de Cássio. Ele se referiu ao homem que foi acusado de matar o seu irmão e Marcelo. Disse que o aparente assassino era membro de uma gangue rival deste. Inimigo declarado. E que certamente os matou por vingança. Ainda complementou, dizendo que o mesmo foi condenado, saiu da cadeia por bom comportamento, mas morreu numa perseguição policial. Embora interessada pelo assunto, Sônia mudou o foco de suas atenções ao notar a presença de uma menina de 8 anos. Era a Heleninha, orfã de pai e mãe criada por Fabíola havia dois anos. Sem raciocinar direito, mas se deixando levar pelo impulso e pela paixão por aquela menina, Sõnia decidiu adotá-la. Mas não revelou a Rossi, inicialmente, que a garota foi criada por parentes do homem que quase o matou. Sabia que isso não importava. Detalhe sórdido, comparado ao amor que ela notou que Rossi nutriu, desde sempre, pela menina. Eram os pais ideais, amorosos, cuidadosos e compreensivos.
Semanas depois, Sônia e Rossi assinaram a papelada de adoção. Burocracia incômoda. Mas tudo certo. Conselho tutelar. Vara da Infância e da Juventude. Todos aprovaram. Voltaram à mansão com Heleninha, e se surpreenderam com a presença de Carenina e o seu intrigado noivo, Zepelin. Esse, ao saber da construção da casa de shows de Rossi, ofereceu os seus serviços como tesoureiro, visando cuidar dos investimentos daquele. Carenina, com o seu jeito persuasivo, facilitou a aprovação de Sônia e Rossi. Zepelin estava contratado, e, com o tempo, ainda conseguiu firmar uma relação de amizade e confiança para com o seu patrão.
Agora Zepelin estava envolvido diretamente na vida de Rossi, Sônia e Martinha. Não demorou muito tempo para descobrir situações estranhas e suspeitas. Aos poucos, ao se inteirar da organização financeira de Rossi, descobriu que Sônia emitia dinheiro, sem o marido saber, para Fabíola e Marco Aurélio. E, através de um outro empregado, ficou sabendo que ela entregava uma maleta em cash, correndo riscos evidentes de ser assaltada. Assim, Zepelin, num impulso investigativo, seguiu os passos dela. Quando se deu conta, ambos estavam andando a pé, do bairro Rebouças até a Vila Torres. Insanidade, prudência ou ideia premeditada? Zepelin refletiu que, caso Sônia pegasse um carro, poderia evidenciar o seu trajeto suspeito, e ser descoberta por Rossi. Logo, um fato o fez parar de levantar hipóteses em relação àquela mulher misteriosa. Pois notou que ela corria riscos. Ao chegar até uma viela deserta, Sônia foi surpreendida por dois jovens assaltantes. Eles tentavam puxar a maleta dela. Mas foram rapidamente imobilizados por Zepelin, o qual estava armado. Salva por ele, Sônia apenas lhe agradeceu. Pois o dinheiro estava intacto. Com o calor dos acontecimentos, ela nem sequer refletiu o que ele fazia por lá, e por qual motivo estava armado. Zepelin decidiu conduzi-la para um local seguro. Optou por levá-la para a futura casa de shows. Por estar com a maleta cheia de dinheiro, ela hesitou. Pois poderia encontrar o seu marido e não conseguir convencê-lo com explicações precisas sobre a natureza daquele dinheiro. Zepelin garantiu que apenas ele, e outro funcionário, pouco familiar, estavam lá. Assim, Sônia o acompanhou, intrigada e, ao mesmo tempo, curiosa. Uma vez que queria conhecer a futura casa de shows.
Quando chegou no recinto, Sônia logo se assustou. Pois lá era o terreno da clínica de Otávio, o pai de Rossi. E de lá é que ela pegou o revólver calibre 38 do crime de 1998. Procurou disfarçar o espanto quando Zepelin a pressionou sobre a natureza do dinheiro que ela carregava. Com medo de ele revelar a verdade a seu marido, Sônia pediu segredo. Zepelin, hesitante, acatou, contanto que ela esclarecesse a verdade. Assim, Sônia disse que mandava dinheiro para as pessoas que criaram Heleninha. E ainda relatou que os mesmos eram a mãe e o irmão caçula do namorado de Lídia que morreu. Impactado com a última afirmação de Sônia, Zepelin matou a charada. Mas procurou não esboçar reação de surpresa, tampouco revelar o que concluiu. Apenas questionou, dubiamente, o motivo de ela ter ficado nervosa na casa de Carenina, quando esta mencionou o nome de Cássio? E também perguntou se, de fato, ela tinha a obrigação de ajudar a família dele, uma vez que já havia adotado legalmente Heleninha? E, por fim, questionou a razão de Sônia ter passado mal ao entrar na antiga clínica de Otávio, de onde, por sinal, saiu a arma que matou tanto Marcelo como Cássio? Sônia, indubitavelmente, ficou desesperada com interrogatórios tão tendenciosos. Tinha a nítida sensação de que Zepelin já sabia do seu crime, e o pior: estava fazendo um jogo psicológico torturante e perigoso, com perguntas retóricas e suspeitas. Pelo visto estava chegando o momento de ser desmascarada por todos, mesmo arrependida de seu crime, e não tendo cometido mais nenhum ato ilícito nesses últimos 17 anos...
CONTINUA...
(Renan Fernandes)
Enviado por (Renan Fernandes) em 29/06/2015
Alterado em 30/06/2015