Renan Fernandes

Lutando nessa guerra interna

Textos

"GUERRA PELA VIDA"
Do que são capazes aqueles que se encontram em estado de exclusão ou  de desespero? Julgam-se acima da própria ética e da convenção para agirem de acordo com os seus instintos? Sejam esses instintos de sobrevivência ou de ganância, é certo que não falta vontade, tampouco pudor para a concretização de ideias transgressoras e incisivas. Tudo isso se aplicava à vida de Rafaela, jovem estudante de medicina, residente em Curitiba.
Uma pessoa persistente e dedicada. Levou cinco anos para ser aprovada na Universidade Federal do Paraná, a mais concorrida do estado. Com 23 anos, achava-se suficientemente madura para encarar o desafio de passar 6 anos na graduação e depois residir em um hospital. Seu desejo central era se tornar psiquiatra. Contudo, tinha também ambições pragmáticas de se consolidar financeiramente a curto e médio prazo. Algo que se contrapunha ao processo gradual e lento dos períodos da faculdade. Assim, Rafaela se viu diante de uma situação complexa, necessitando arrumar maneiras pouco ortodoxas de se sobressair. Como ela conseguiria enriquecer em pouco espaço de tempo, a não ser transgredindo princípios e condutas éticas? E, ademais, que fator concreto a motivaria, ou melhor, a impulsionaria a dar entrada aos seus objetivos? Nessas indagações que antecederam as suas ações, Rafaela amiúde se recordava da filosofia de vida de seu  professor do colegial, um sujeito ardiloso que serviu como referência para os seus pensamentos distorcidos. Guiminha, como ele gostava de ser chamado, aconselhava os seus alunos a serem individualistas e sempre se dedicarem a seus sonhos, mesmo se esses sonhos fossem incômodos a outrem. Além disso, dizia ele que a sociedade era hipócrita e gostava de ser enganada, portanto, seria um método eficaz aparentar complacência para com o próximo, e dissimular com o intuito de saciar o desejo das pessoas em serem idiotas e ludibriadas.
Embora repleto de preconceitos, e acusado de ser adepto de pensamentos fascistas e opressores, Guiminha nunca foi preso ou julgado por incitar a violência e manipular mentalidades. Inclusive, ganhou fãs de seus posicionamentos radicais, tal como a própria Rafaela. Agora que sua vida estava começando a engrenar, ela necessitava agir para realizar, a qualquer custo, os seus anseios. Contudo, quando, num fim de tarde, voltou da faculdade e foi em direção ao bairro Boqueirão, onde morava, relatou os seus anseios para a sua mãe, Adriana. Esta, mais comedida e receosa, repudiou a ideia de sua filha procurar Guiminha novamente. Até porque, sabia que ele não era uma pessoa confiável. Ademais, era compreensível esperar de uma mãe tamanha precaução, ainda mais por Adriana ter se envolvido com Guiminha no passado, sem a filha saber. Conquanto compreendesse, até certo ponto, as preocupações de sua mãe, Rafaela não hesitou em procurar Guiminha no curso onde ele dava aulas. A sua intenção era pedir conselhos e, também, encontrar alternativas para ganhar dinheiro fácil. Sabia que o seu professor era bem relacionado com a high-society, uma vez que, paralelamente às atividades acadêmicas, gerenciava jovens para a prostituição. No entanto, Rafaela relatou que não queria apenas um envolvimento fugaz e efêmero com algum cliente com ótimo poder aquisitivo: queria alguém com status suficiente para alicerçar a sua carreira de médica que estava apenas começando.
Guiminha, um sujeito dúbio e perspicaz, após se mostrar surpreso com a proposta e obstinação de Rafaela, de maneira radical a conduziu até uma festa em que se encontravam figuras importantes da alta sociedade curitibana. Muitos daqueles convidados sabiam de suas atividades ilícitas. Não demorou muito para Guiminha, tão bem relacionado, apresentar Rafaela para um jovem médico chamado Lucas André. Este, por sinal, ao conhecer aquela se mostrou extremamente encantado e, paradoxalmente, intrigado. Afinal de contas, nessas habituais cerimônias em que, invariavelmente, eram frequentes tipos tão óbvios, fúteis e cansativos, encontrar aquela garota, quase mulher, com uma beleza extraordinária e uma feição singela e aparentemente ingenua, era como sair de um quadro pincelado pelo tédio e inserir, numa nova moldura, cores mais vibrantes e vivas. Assim, naquele primeiro encontro, as conversas entre eles, embora triviais, tiveram uma impressão intensa e os fizeram se dar conta de que novos momentos seriam vivenciados.
Dois dias depois, já sabendo das pretensões de sua filha, Adriana se mostrou extremamente receosa, uma vez que, tendo em vista a influência subversiva de Guiminha, Rafaela estava trilhando um caminho perigoso. No impulso, Adriana procurou Guiminha na faculdade onde este prestava as suas aulas, e insistiu para o mesmo se afastar definitivamente da vida de Rafaela. Demonstrando um tom debochado e desdenhoso, Guiminha fez Adriana se dar conta da forma invasiva que a mesma usava para se meter levianamente nas escolhas da própria filha. E acrescentou que a forma como ela se mostrava diante do caráter vanguardista de Rafaela era conservador e ultrapassado demais. Nervosa e quase provocando um escândalo, Adriana não hesitou em acusá-lo de ter tido um comportamento hediondo com a própria, uma vez que, no passado, a violentou sexualmente. Transtornado com a acusação, Guiminha jogou na cara de Adriana que ambos eram extremamente apaixonados e que a versão dela de mulher puritana era fachada. Afinal, embora ele tenha extrapolado na maneira de lidar com aquela fatídica relação sexual, é inegável que a mesma consentiu antes da consumação do ato. Consternada, Adriana sentou-se na escrivaninha da sala dos professores, e, chorando, relatou que sua filha, Rafaela, se soubesse de que maneira foi concebida, certamente o repudiaria e, ainda, se daria conta de que dar trela aos ideais fascistas do mesmo era pura ilusão e manipulação. Assim, Guiminha a prensou na parede, dizendo que suas ideias eram realistas e, mesmo que Adriana tentasse negar, a verdade é que Rafaela herdou o caráter e a audácia do pai que ela nem sequer sabe que existe. Procurando se controlar, Adriana se afastou imediatamente de Guiminha, recompôs-se e decidiu ir embora. Aquele, por sua vez, conquanto tenha demonstrando domínio da situação conflituosa, após a saída de Adriana começou a respirar fundo, direcionou-se até a pia de um banheiro e lavou o rosto incessantemente. Um nervosismo e uma ansiedade emergiram de suas entranhas. Guiminha sabia que estava lidando com problemas muito mais sérios do que aparentavam ser. No entanto, agora que havia sido procurado por Rafaela, não poderia desistir ou, então, deixar de prestar os seus favores. Mesmo de forma tortuosa, ele precisava demonstrar o seu amor de pai.
Assim, após aquele diálogo conflituoso com a amargura Adriana, Guiminha foi tendo encontros frequentes com Rafaela no seu apart situado no bairro Bacacheri. Era um ambiente não muito grande, porém cuidado com esmero e sofisticação. Tinha uma sacada pela qual se podia notar a localização do recinto: 17º andar de um prédio. Nisso, a vista da cidade através daquele ponto de vista era privilegiado e panorâmico. As conversas entre pai e filha eram inicialmente e habitualmente triviais. No desenvolvimento da conversação é que eram expostos os objetivos que os uniam, bem como as afinidades que, como uma magia injustificável, atraíam esses dois alpinistas sociais. Desde o encontro com Lucas André, o médico residente bem-sucedido financeiramente, já haviam se passado três meses. Nesse ínterim, Rafaela já estava consolidando os seus estudos na universidade e, paralelamente, fixando o seu lugar na vida de seu novo investimento. Se havia amor e um mínimo de afeto e consideração, ainda era muito cedo para constatar. A verdade é que as preocupações de Rafaela, talvez pela influência capitalista de Guiminha, apenas se resumia a começar a garantir uma vida mais confortável. Logo, a pretensão de Rafaela era persuadir Lucas André a lhe dar um apartamento de cobertura situado no bairro Mossunguê. Com a ajuda de Guiminha, tão próximo dos familiares de Lucas, isso não seria uma tarefa tão engenhosa. Dias após o encontro com Guiminha, este conseguiu conversar sobre o assunto com Lucas André, demonstrou a sua capacidade exímia de manipulação ao relatar problemas inexistentes que afligiam Rafaela, como um fictício assalto na casa dela do bairro Boqueirão. Assim, acreditando na violência sofrida pela namorada, Lucas não hesitou em ajudá-la. A situação se tornou ainda mais convincente porque, de fato, Guiminha forjou um assalto na casa de Rafaela e Adriana. Esta, por sinal, ficou extremamente assustada com a situação. Mas, após algumas semanas, e com Rafaela já morando na sua ambicionada cobertura do bairro Mossunguê, passou a desconfiar do forjado assalto, decidindo averiguar a situação.
Em uma tarde ensolarada no bairro Prado Velho, onde Adriana trabalhava como cobradora de ônibus na estação-tubo Paiol, a providência divina, de certa forma, se mostrou marcante e favorecedora para o esclarecimento de histórias mal-contadas. Estava tendo um fluxo intenso de passageiros naquele dia. Universitários, trabalhadores, mendigos. Pessoas de todas as classes sociais e de todas as complexidades humanas possíveis. Um desses sujeitos, o ardiloso estudante Alex, chegou para pagar a sua passagem e, imediatamente, Adriana o reconheceu como um dos três assaltantes que vieram lhe abordar na casa do bairro Boqueirão. Transtornada, Adriana começou a gritar e a pedir ajuda de seus outros colegas cobradores que estavam trabalhando. Nervoso, Alex entrou na estação-tubo, tentou entrar num ônibus que chegava no local, porém foi surpreendido por um cobrador amigo de Adriana, o destemido Proença. Este o prensou na parede de vidro, no mesmo instante quando aquela se aproximou e exigiu que ele explicasse porque armou um assalto na sua casa. De chofre, ela começou a deduzir que Alex era aluno de Guiminha, e este confirmou não só esse fato, mas também que apenas prestou um serviço ao seu mestre, um ídolo que sempre lhe ensinou a transgredir o sistema engessado de uma sociedade hipócrita. Ainda mais estarrecida, Adriana implorou para que alguém chamasse a polícia. Quando Proença iria fazer isso, Alex imediatamente os surpreendeu com um canivete, fazendo Adriana de refém e a levando dentro um ônibus que surgiu e que se direcionava para o bairro Bacacheri.
Entrementes, Rafaela estava estudando no seu novo apartamento, e, depois de alguns instantes, se direcionou até o topo do prédio para olhar a vista da cidade. De chofre, Lucas André surgiu no local e a abraçou. Ele chegou com o intuito de avisar que Guiminha os havia convidado para um encontro no apart do mesmo no fim da tarde. Rafaela aceitou e ambos foram imediatamente para o local.
No apart de Guiminha, este estava apreensivo e ansioso com a chegada de Rafaela. Estava vendo que encaminhou a sua filha para uma vida tranquila e aprazível. De certa forma, a sua missão estava cumprida. Contudo, ainda precisava esclarecer algumas situações, a começar pela revelação de seu verdadeiro grau de parentesco com Rafaela. Mesmo que contrariasse Adriana e fosse considerado um machista ordinário e monstruoso, Guiminha precisava contar a verdade para Rafaela e tentar recomeçar. Assim, quando Rafaela e Lucas André chegaram, Guiminha ficou extremamente feliz e, paradoxalmente, temeroso. Ele se aproximou de ambos, os abraçou fortemente e pediu para que se sentassem confortavelmente na poltrona enquanto preparava um uísque para todos tomarem. Mal começou a preparar a sua bebida, Guiminha se surpreendeu com a chegada de Alex e Adriana. Esta continuava imobilizada pelo aluno tresloucado. Gritando de desespero ao ver a mãe naquela situação, Rafaela notou a figura de Alex e o reconheceu como um dos assaltantes. Por incrível que pareça, nem Rafaela sabia que o assalto à sua casa havia sido forjada por Guiminha. Ela só o tinha procurado e confiado inteiramente na capacidade de persuasão dele para convencer Lucas a lhe entregar uma cobertura num bairro nobre de Curitiba. Assim, nesse clímax, Alex, enlouquecido, disse a Guiminha que havia trazido Adriana para cá para saber se o seu professor, e mestre, o autorizava a eliminá-la, uma vez que ela havia descoberto que ele foi o mandante do assalto. Nessa situação desesperadora, Rafaela se deu conta de que Guiminha só fez isso para ajudá-la e, nervosa e transtornada, se deu conta de que foi longe demais na sua ambição de subir na vida. Lucas André, nem um pouco ingênuo, começou a se dar conta de que foi envolvido por dois golpistas e, revoltado com Rafaela, desferiu-lhe um soco no rosto. Ela caiu aos prantos nos braços de Guiminha, o qual, ao ver Adriana imobilizada por Alex, exigiu que esse a deixasse em paz. Alex ficou confuso com o pedido de seu professor e não o obedeceu. Lucas, por sua vez, embora enojado com a situação, tentou apartar o conflito, porém, quando tentou se aproximar de Alex, este quase o lesionou com o afiado canivete. Assim, Rafaela se soltou abruptamente de Guiminha, acusou-o de ser manipulador, como sua mãe havia dito, e que, agora, as consequências de tanta maldade estavam surgindo. Ainda mais nervoso ao constatar que foi longe demais com os seus objetivos de vida, Guiminha partiu para o impulso e avançou em cima de Alex para salvar a vida de Adriana. Contudo, quando ambos brigaram para a posse da arma, de chofre, Alex desferiu-lhe um golpe no abdome. Todos ficaram estarrecidos. Adriana gritou desesperada. Rafaela ficou atônita e Lucas André, vendo Alex transtornado, o imobilizou e acionou a polícia e uma ambulância. Sentindo que estava numa situação irreversível, Guiminha pediu perdão a Adriana e a Rafaela, sobretudo a Adriana, por, no passado, ter, de fato, a violentado sexualmente e não assumido a paternidade de Rafaela. Após essa revelação, Guiminha não resistiu aos ferimentos e faleceu antes da chegada dos primeiros socorros. No mesmo instante, a polícia surgiu e prendeu Alex. Rafaela, ainda mais perdida e confusa com a situação, correu para abraçar a sua mãe, e Lucas André, compadecido da situação, tentou reconfortá-las.
Uma semana depois, Adriana, Rafaela e Lucas André foram até a missa de 7º dia de Guiminha. Nesse espaço de tempo, Rafaela entregou a cobertura para Lucas, pediu desculpas por ter o usado como um instrumento de ascensão social e prometeu que nunca mais o procuraria. Contudo, Lucas André, embora aborrecido com as mentiras, de Rafaela, a amava verdadeiramente. Assim, mesmo aceitando a chave da cobertura de volta, não permitiu que ela se afastasse de sua vida. Ambos voltaram a namorar, mas adiaram o noivado, decidindo se conhecer melhor aos poucos. Enquanto isso, Adriana se acertou com Proença, o qual sempre a amou, porém percebia que ela escondia um segredo que a traumatizava. Adriana, então, contou toda a verdade, desde a violência sofrida por culpa de Guiminha, bem como o que escondeu a vida inteira de sua filha. Agora, livre dos fantasmas do passado, Adriana se casou com Proença.
Anos depois, já noiva de Lucas André, Rafaela estava terminando a graduação de medicina e começando a residir num hospital de grande porte. Ela havia mudado o seu comportamento ambicioso e se tornado uma mulher mais paciente e generosa. Sabia que para viver bem, e de uma forma plena, necessitava lutar com armas mais nobres e pensamentos menos levianos. Sabia que a guerra pela vida consistia em vencer os próprios defeitos internos, uma vez que dentro dos corações humanos se situava o palco do incessante conflito entre o bem e o mal.

FIM
(Renan Fernandes)
Enviado por (Renan Fernandes) em 18/02/2017
Alterado em 18/02/2017
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