Renan Fernandes

Lutando nessa guerra interna

Textos


"MANHATTAN"

 

CAPÍTULO I

 

Lucélia, no ano de 1980, era uma jovem de 23 anos que não podia ser considerada ingênua, tampouco submissa. Não era o tipo de pessoa que levava desaforo para casa. Muito pelo contrário. Era bastante resolutiva, até mesmo, grosseira em alguns momentos. Contudo, ninguém duvidava do seu caráter, da sua retidão e do seu senso de justiça.

 

Uma grande mulher dentro de um corpo exíguo. Magra, caucasiana, cabelos escuros na altura do ombro, tão somente com 1 metro e 57 centímetros de altura. Mas, quem se sentia no direito de julgar que esta pequena notável era frágil e resignada? A sua teimosia era a sua marca inquestionável. Tanto que, ao se mudar para Curitiba, no ano de 1976, após sair da sua cidade natal, a interiorana Contenda, Lucélia tinha apenas um único objetivo: se tornar uma enfermeira de renome.

 

Nos quatro primeiros anos vividos na Capital do Estado do Paraná, Lucélia não passou por momentos fáceis. Há de se salientar, contudo, que nenhuma dificuldade surgida foi algo imprevisível ou inimaginável aos olhos de uma garota preparada para perseverar. Lucélia sofreu, não há como negar. Porém, não esmoreceu, tampouco desistiu dos seus objetivos capitais.

 

Em 1976, alugou uma quitinete na Rua Alferes Poli, no bairro Centro, ocasião em que conheceu e passou a residir com duas mulheres que tentaram lhe induzir a ingressar no submundo curitibano: Katarina e Coralina.

 

Katarina era uma estudante de medicina de 25 anos que recebia mesada dos seus pais, farmacêuticos moradores do município da Lapa. Todavia, o valor que ela alegava receber com o intuito de adquirir materiais e livros caros do curso letivo, na realidade, era utilizado para a aquisição de roupas de luxo e para a locação de pontos de encontro nas noites curitibanas. Ou seja, Katarina era uma prostituta, que já possuía uma clientela fiel, sobretudo, estudantes e professores do seu curso na faculdade.

 

Coralina, por sua vez, era uma técnica de enfermagem na faixa de 28 anos que ajudou Lucélia a arrumar o seu primeiro emprego como auxiliar de enfermagem na Capital, em um Hospital especializado em atender pacientes com tuberculose, na região do bairro Jardim das Américas. Coralina, apesar de ser uma profissional disciplinada, também passou a exercer atividades paralelas na prostituição, juntamente com sua amiga, Katarina. E, numa conversa que as três amigas tiveram, na quitinete da Rua Alferes Poli, em uma noite de folga de uma sexta-feira quente de novembro, Lucélia percebeu as reais intenções das novas companhias.

 

— O meu perfil não é esse! Eu posso ser taxada como careta, virgem, puritana, tudo o que vocês quiserem me rotular. Mas, eu não sou o tipo de mulher que vai ser convencida a vender o próprio corpo dessa maneira tão mesquinha, tão vulgar, tão chula  asseverou Lucélia, bastante taxativa e seca nas ponderações.

 

— Meu Deus, mas que visão mais moralista e reacionária, meu bem  destacou Katarina, em tom debochado. - Você não faz ideia do que está perdendo. A comissão que nós recebemos, minha querida, e, principalmente, o networking com nomes renomados, são questões que estão muito acima da sua educação interiorana, provinciana e franciscana - continuou Katarina, impaciente.

 

— Eu faço das minhas as palavras da Katarina  manifestou-se Coralina, pouco assertiva, como se também estivesse sendo convencida pela amiga mais espevitada. - Ainda mais porque a nossa empreendedora, nessa aventura louca, já está prestes a fisgar o professor de Anatomia e se tornar a fiel dele.

 

— Que história é essa?  questionou Lucélia, desconfiada.

 

 Você, também, hein, Coralina? Que precipitação em achar que eu já venci essa parada - aduziu Katarina, incomodada. — Mas, de qualquer forma, eu já estou dando um jeito de ter aquele homem só para mim. Aquele homem maravilhoso, poderoso, uma referência para qualquer pessoa vocacionada para se dar bem na vida a qualquer custo. Eu só preciso mesmo me livrar do conjunto da obra. A família prepotente, hipócrita, a mulherzinha sem sal nem açúcar, que, por sinal, também é a minha professora, só que de Genética. Como eu odeio aquela mulher! E como eu vou me sentir vingada quando esfregar na cara dela, e na frente de todos aqueles alunos imbecis, que eu sou a nova mulher do onipotente Mariano Levi Brown!

 

— Sonhando acordada, Katarina, ou, por acaso, você já está colocando em prática as suas artimanhas?  indagou Lucélia, em tom de escárnio.

 

— Eu já estou nos atos preparatórios. O Mariano me prometeu que vai pedir o desquite. Estamos em uma nova era, minhas caras! 1976! A lei do Divórcio já está tramitando no Congresso. Eu sou inteligente. Não é porque eu sou "puta" que eu sou mal informada. Ele nunca amou aquela ordinária da Clara. O casamento deles foi uma convenção indecente de duas poderosas famílias da área médica. Ah, mas eu vou quebrar esse telhado de vidro. E vou despachar a Clara, junto com o filho dela, para bem longe. Ela não vai nem ter coragem de continuar dando aula na faculdade. Vai ser um escândalo! Vocês podem escrever!

 

— Eu não estou entendendo direito essa história  afirmou Lucélia, mais sensata.  Pelo que eu pude perceber, você já está muito envolvida mesmo, Katarina. E o tal do Mariano realmente me parece ser um sujeitinho que já te levou na conversa. Fez para você inúmeras promessas, possivelmente também começou a vir com uma falácia de que está descontente com a vida pacata que ele leva ao lado da esposa e do filho. E conseguiu, com tudo isso, o que ele mais almejava: te neutralizar e te usar até quando ele puder e, principalmente, até quando ele enjoar de você e te descartar como um objeto ultrapassado!

 

Katarina não gostou da assertiva de Lucélia e se levantou, possessa.

 

— Mas, o que é isso, Lucélia? Que história é essa digo eu? Você ser essa beata santificada, por ter sido criada por uma família de caipiras, internada num colégio de freiras retardadas... Tudo bem. Você certamente é o perfil ideal da mulher virgem, puritana e otária. Mas, eu não sou otária, e muito menos uma energúmena. Ele é que está comendo na minha mão. Eu sei tudo sobre a vida dele. Onde ele mora, quais são as pessoas pertencentes ao círculo social dele. Enfim, eu sou a bomba de Hiroshima que pode ser lançada a qualquer momento e causar um dano avassalador!

 

— Você pode voltar a sentar, Katarina, porque eu não me intimido com pessoas que conversam comigo me olhando de cima para baixo. Até porque, estamos em igualdade de condições. Realmente, vocês duas não vão me convencer a levar essa vida dupla. Eu tenho minhas dificuldades, meu ordenado é uma vergonha a nível federal, mas a minha dignidade é transcendente. E é ela que me evita, justamente, de cair na cilada da minha soberba, como você está caindo na cilada da sua ambição, Katarina.

 

Sem palavras e cansada de discutir, Katarina voltou a se sentar, expressando que Lucélia, no fundo, tinha razão nos seus argumentos. Coralina, percebendo o constrangimento de Katarina, que não olhava mais para ninguém, apenas controlava o seu choro, fez questão de abraçá-la, em um gesto de amizade e de cumplicidade.

 

— Você também não precisava ter sido tão dura nas palavras, Lucélia  salientou Coralina, indignada.

 

— Vocês é que estão sendo duras consigo mesmas. Vocês estão analisando a vida, as pessoas, as circunstâncias, de maneira completamente distorcida. Meu Deus. O que importa se eu sou essa santidade mais casta do que a Imaculada Conceição de Maria? Essa seria eu, nos olhos preconceituosos de vocês. Só que esse rótulo que vocês colocam sobre mim não justifica e não protege vocês das armadilhas lá de fora. Você chora, agora, Katarina, porque já está mais consciente de que nunca vai ser completamente realizada ao manter essa vida e essa relação abusiva com aquele médico desgraçado, que, se Deus quiser, eu jamais vou conhecer. Saia dessa cilada enquanto é tempo, Katarina. Esse Mariano não vai te assumir. Não vai deixar a esposa dele, não vai pedir o desquite. Não vai deixar o filho. E muito menos vai se expor diante dos alunos, dos reitores da faculdade, de todos que fazem parte do círculo social e hipócrita dele. Eu falo isso para o seu bem. Porque eu gosto de você, apesar de você achar que não.

 

Katarina controlou o choro, encarou Lucélia com uma expressão de aceitação, todavia, se recompôs, levantou-se, começou a arrumar o cabelo e a ajeitar o batom em um espelho improvisado. Coralina ficou próxima de Lucélia e ambas passaram a encarar Katarina com um olhar que misturava pena e empatia.

 

— Eu aceito a sua opinião, Lucélia, sem querer brigar ou sem querer defender o meu ponto de vista com tanta ênfase e sangue nos olhos da forma que você faz como ninguém. Mas, daqui a pouco eu vou encontrar o Mariano, o homem que eu amo, que vai ser meu, lá na Casa Noturna Manhattan, que foi inaugurada recentemente no bairro Batel.

 

— Só vai gente graúda lá, Katarina  afirmou Coralina, curiosa em saber como Katarina pagou o ingresso.

 

 Eu sei disso. Mas, o Mariano já me pagou e praticamente me convidou. Ele me chamou um táxi, inclusive. Vamos nos encontrar lá na frente. Daqui a meia hora. Mesmo que você não torça por mim, Lucélia, eu ficaria feliz se você, ao menos, me desejasse boa sorte, um bom divertimento e uma ótima noite.

 

Sorrindo, Lucélia se levantou, aproximou-se de Katarina e mexeu em seus cabelos vastos, morenos, que quase atingiam a cintura.

 

— Eu te desejo muito mais do que isso, minha amiga. Eu te desejo bom senso. Eu te desejo amor próprio. Eu te desejo segurança. Eu te desejo... Cuidado.

 

Assim, ambas as amigas se abraçaram com muito carinho e profundidade. Coralina se juntou a elas e também as abraçou. Por fim, Katarina se desvencilhou das amigas, olhou para elas pela última vez e foi embora, fechando a porta para fora. Sozinhas em casa, Lucélia e Coralina voltaram a se sentar em almofadas improvisadas no chão.

 

— Vamos beber uma tequila, Lucélia?

 

— Hoje, não, Coralina. Mas, sirva-se à vontade.

 

Assim, Coralina começou a preparar a sua bebida, enquanto Lucélia se levantou em direção a janela, fechando-a. De chofre, elas puderam ouvir dois tiros surgindo da Rua. Assustadas, as amigas se entreolharam.

 

— Meu, Deus, Coralina. A Katarina está lá na Rua. Esses tiros... Vamos descer!

 

— Será que não é muito perigoso?  indagou Coralina, assustada.

 

— Nessa altura do campeonato, todos os inquilinos curiosos já devem ter descido para ver o que aconteceu. Deixa essa bebida para depois e vamos correr!

 

Desse modo, Lucélia puxou as mãos de Coralina, a qual rapidamente colocou a tequila em cima de uma mesinha acoplada na parede. Ato contínuo, ambas desceram com apreensão e agilidade as escadas do prédio que abrangia a quitinete em que elas moravam. Ao chegarem na Rua, logo viram um aglomerado de pessoas em volta de um corpo. Apreensivas, elas se aproximaram. Lucélia viu o corpo estirado no chão primeiramente e colocou as mãos sobre a boca, horrorizada. Coralina, de seu turno, ao perceber que se tratava de Katarina, ensanguentada, gritou tresloucadamente, fazendo o seu desespero ecoar no quarteirão e atraindo mais pessoas que abriram as janelas de seus apartamentos nos prédios para verificarem o que ocorreu. As amigas se abraçaram, emocionadas. Após, Lucélia se desvencilhou e olhou para o corpo de Katarina, a qual levou dois tiros: um no tórax, e outro no abdome.

 

— Não é possível que isso esteja acontecendo, Coralina! Foi à queima-roupa. E o táxi que ia levar ela para o Manhattan? Ela estava descendo porque o táxi tinha chegado! Alguém pode me explicar? Alguém viu de onde partiu esse tiro? E se tinha um táxi, aqui?  gritou Lucélia, exasperada.

 

— Nós acabamos de acionar a polícia militar, Lúcelia. Chamamos a ambulância, também. Apesar de não ter mais nada a se fazer  asseverou o porteiro do prédio, afobado.

 

— Você presenciou o que aconteceu, seu Gomes?  indagou, Lucélia, interrogativa.

 

— Sim, mocinha. Foi um carro que chegou no galeto, ocasião em que um indivíduo com balaclava cobrindo o rosto, que estava no banco de acompanhante, abriu a janela do veículo e disparou os tiros antes que a Katarina pudesse entrar no táxi. O taxista, depois do incidente, zarpou para Deus sabe onde. Enquanto a pobre coitada ficou aí, estirada.

 

— Eu não tenho condições de ficar, aqui, Lucélia  disse Coralina, chorando descontroladamente.

 

Vendo o desespero da amiga, Lucélia a abraçou.

 

 A gente precisa ser forte, minha amiga. E esclarecer tudo isso. Ela ia para o Manhattan, encontrar aquele tal de Mariano. Eu peço que você fique por aqui, Coralina, porque eu vou para lá, atrás desse médico ardiloso. Alguma coisa me diz, o meu sexto sentido, a minha intuição feminina, seja lá o que for, que isso tem dedo dele. Ele foi preciso, matemático, cirúrgico e monstruoso. Mas, ele não vai ficar impune. Pode ter certeza disso.

 

— Mas, Lucélia, como você pode deduzir uma coisa dessas? Cuidado para não ser presa por calúnia!

 

— Eu estou completamente possessa de ódio, Coralina. Ele se aproveitou da nossa amiga e descartou da maneira mais vil, mais tenebrosa, hedionda possível.

 

— É melhor você não ir.

 

— Eu vou, sim, Coralina. Fique por aqui. Eu pego um ônibus e chego lá nem que seja a última coisa que eu faça nessa minha vida! Mas, essa injustiça não vai ficar no anonimato. Ela vai ser escancarada!

 

Assim, Lucélia pegou um ônibus na direção da Casa Noturna Manhattan. Chegou ao local e percebeu uma fila de pessoas sendo revistadas antes de entrarem com os seus ingressos. Percebeu, também, que, internamente, a estrutura da Casa Noturna possuía locais mais privados, com cadeiras, mesas e espaços voltados para conversações. Tudo isso visto da parte de fora, tendo em vista que uma parede transparente destacava o interior do referido local. Desse modo, Lucélia observou um sujeito sentado discretamente, de costas para o seu ponto de visão, sendo um homem alto, magro, cabelos escuros, pele branca e levemente bronzeada. Ele fumava um charuto e bebia um uísque. Lucélia deixou de olhá-lo do lado de fora e se aproximou da fila de ingressos.

 

— Boa noite. Eu me chamo Katarina Fagundes e já tenho uma mesa reservada. Quem comprou o ingresso para mim foi o Doutor Mariano Levi Brown  dissimulou Lucélia, obstinada.

 

A atendente nem sequer pediu os documentos de Lucélia. Acreditou na sua versão e deixou ela ingressar no estabelecimento.

 

— O Doutor Mariano está na Mesa 48, esperando por você, senhora Katarina.

 

Lucélia acenou com a cabeça, percorreu um corredor escuro, passou na sala de Danceteria, que estava agitada, se deparou com algumas pessoas e conseguiu sair do local, direcionando-se para o espaço reservado onde se encontrava Mariano. Na sequência, Lucélia avistou a mesa 48 e notou que Mariano estava compenetrado, olhando para os lados, fumando e bebendo tranquilamente. Possessa, ela se aproximou com pressa e altivez até a mesa dele. Surpreendido, Mariano a olhou de cima a baixo, com uma expressão que mesclava espanto e atração.

 

— Quem é você?  indagou Mariano, deixando de fumar na hora e descartando o charuto em um cigarreira de prata.

 

— O meu nome é Lucélia de Oliveira. Não é um sobrenome poderoso, influente e onipotente como o seu. Mas, é um sobrenome de gente descente, que não se suja por qualquer mesquinharia. Eu sou amiga da sua atual ex-amante e também atual ex-aluna, Katarina.

 

— Vocês duas só podem estar de gozação com a minha cara! Porque não é possível! Onde está a sua amiga? Ela sabe que eu não gosto de escândalos, que eu sou reservado e que a nossa relação não deveria ser exposta a terceiros.

 

— A minha amiga, meu caro, acabou de sofrer um atentado na frente da casa dela, quando vinha para cá te encontrar. Justamente após ela dizer que você tinha pedido um táxi para acompanhá-la até aqui.

 

Estarrecido, Mariano quase pulou da cadeira.

 

— Isso não pode ser verdade.

 

— Como você consegue ser tão cínico, hein? Eu tenho certeza de que você teve participação nessa sujeira toda. Você usou a Katarina. E não teve o menor remorso de se livrar dela dessa maneira cruel, mesquinha e deplorável.

 

— Você só pode ser uma louca que veio aqui para me perturbar.

 

— Sou louca, sim, de estar na frente de um assassino frio, sociopata e dissimulado.

 

— Não é hora para agressões! Não é hora para barracos promíscuos! A gente precisa acionar os primeiros socorros!

 

— Já não há mais nada que se possa fazer! O seu crime foi certeiro. Mas, eu não vou deixar isso impune. Você vai pagar por tudo o que você fez, Mariano!

 

Revoltado, Mariano se levantou da cadeira e passou a segurar fortemente os antebraços de Lucélia. Ambos passaram a se encarar de maneira extremamente tensa e, paradoxalmente, atrativa. Um olhar de desejo surgiu dos olhos de Mariano. Lucélia, de seu turno, também se mostrou atraída, todavia, crente de estar diante do eventual mandante do crime cometido contra a sua amiga, Katarina.

 

CONTINUA...

 

(Renan Fernandes)
Enviado por (Renan Fernandes) em 29/05/2023
Alterado em 30/05/2023
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